
Mesmo quando uma vacina para a doença Covid-19 for anunciada, não serão todos que poderão respirar em pleno alívio. Mais especificamente, não serão TODAS. Afinal, se nada for feito agora, o mundo em que as mulheres sobreviventes da crise humanitária residem não se parecerá em nada com aquele que elas demoraram décadas para construir.
Não é só a saúde pública que está em risco, mas também o futuro das mulheres. Conceitos como equidade, segurança, autonomia e independência femininas, que se manifestaram em tantas ações e projetos nos últimos anos no Brasil, estão sendo descartados rapidamente como questões supérfluas diante da crise causada pela pandemia.
O momento pede, de fato, foco para que a sociedade consiga conter mortes e infecções causadas diretamente pelo novo vírus. Só que agora, mais do que nunca, é urgente exigirmos uma consciência ampla das consequências e impacto que a pandemia irá causar. Porque, ao que tudo indica, a letalidade do vírus é maior em homens. No entanto, o impacto de todos os demais efeitos de uma pandemia recai prioritariamente sobre as mulheres, sobretudo aquelas em maior situação de vulnerabilidade.
Mulheres e meninas estão enfrentando um severo aumento da violência doméstica e sexual, em decorrência do isolamento social (em quatro dias de confinamento, houve um aumento de 50% dos casos no RJ). Os serviços garantidos por lei lhes faltam a esta hora (as delegacias não recebem mais as denúncias de agressão, só flagrantes). Mulheres em trabalho de parto precisam parir sem acompanhante, e com acesso a serviços médicos ainda mais restritos, aumentando as taxas de mortalidade materna (todos os dias, aproximadamente 830 mulheres morrem por causas evitáveis relacionadas à gestação e ao parto no mundo). No âmbito financeiro, vislumbram dificuldades com renda e desemprego, sendo maioria em ocupações informais mal remuneradas (71% das empregadas domésticas não têm carteira assinada, portanto estão descobertas pela legislação em momentos de calamidade como agora). Vivem a sobrecarga com os cuidados domésticos e dos filhos. E, agora, dos doentes não hospitalizados.
Os direitos conquistados pelas mulheres são os primeiros a serem extintos ou não exercidos.
Essas questões são amplificadas pelo fato das mulheres serem frequentemente o principal — senão o único — pilar de apoio e sustentação de filhos, famílias e comunidade. São mães, esposas, enfermeiras, cozinheiras, professoras, faxineiras. Ao todo, 92% das pessoas (5,7 milhões) responsáveis pelo trabalho doméstico remunerado são mulheres, das quais 3,9 milhões são mulheres negras. Na base da pirâmide econômica, mulheres e meninas, principalmente as que vivem em situação de pobreza e pertencem a grupos marginalizados, dedicam gratuitamente 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado. A fraqueza delas é a fragilidade de todos ao seu redor.
O resultado pode ser uma sociedade em que as mulheres se tornem, dada a pressão econômica e social, presas, dependentes, paralisadas e impotentes. Perderemos a sensatez e salubridade da sociedade.
Em momentos de emergência como o atual, existe uma maior facilidade à tomada de decisões drásticas. Acordos que demorariam anos são feitos em poucas horas. Estes momentos catalisadores têm geralmente resultados catastróficos para as mulheres a longo prazo. Entretanto, a consequência dessas medidas, como é de sua natureza, permanecem muito depois do vírus ter saído da preocupação nacional. Mas é hora de acreditar que, sim, eles podem ser contidos! Nosso papel aqui hoje é reforçar o que Simone de Beauvoir disse: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
É por isso que não podemos deixar a questão da mulher para depois. E quando falamos de mulheres, é impossível não levarmos em consideração as dimensões de raça, classe, gênero e de pessoas com deficiência, que caminham lado a lado para uma compreensão interseccional do problema. Discutir agora, enquanto as decisões estão sendo tomadas para que sejam compatíveis com a sociedade na qual queremos viver. E na qual queremos permanecer vivas. E existem muitas ações possíveis de serem tomadas e todos os atuantes da sociedade — setor privado, setor público, sociedade civil organizada e não organizada — têm seu papel e sua responsabilidade nessa frente. E, agora que você sabe que a situação é crítica, nos responda: como vai honrar esse pacto social? Mais do que nunca, precisamos nos unir e mostrar que nosso compromisso com essa agenda é inegociável!
Apresentamos, junto a este manifesto, um relatório com os principais desafios das mulheres frente à crise econômica e de saúde que vivemos, bem como alguns possíveis caminhos que estão fazendo a diferença no mundo. Saiba de tudo isso e assuma o seu lugar nessa jornada.